Há uns dias, o César Mourão gravou um vídeo a anunciar o seu regresso às Manhãs da Comercial. No vídeo, o César dizia, e passo a citar: “É só para vos descansar. Sei que já há para aí ataques cardíacos e tal. Calminha. O Rebenta a Bolha vai voltar quando estiver a chover como se estivesse a regar as minhas suculentas”.
Foi isto que ele disse.
Foi isto que o site da Impala, a editora de títulos como Maria, Nova Gente e TV 7 Dias publicou:
Escusado será dizer que, na rádio, chorámos a rir com isto. E continuamos a chorar a rir. Não estamos a rir COM o idiota que escreveu esta notícia; estamos a rir DO idiota que escreveu esta notícia. Um sketch humorístico sobre o estado da “imprensa” portuguesa não conseguiria fazer melhor. Isto é ouro cómico.
É também fezes sérias.
Nós rimo-nos porque, na verdade, não há assim tanta gente a ir ao site da Impala e não chegou para fazer mossa. Mas podemos sempre especular o que teria acontecido se o César tivesse uma avó fragilizada, doente e distante a quem chega a notícia de que o neto poderia ter tido um ataque cardíaco. “Rumores”. Não se sabe bem se ele teve ou não. Pode ter tido.
Como é evidente, o idiota que escreveu esta notícia ou o grupo para onde trabalha não são obrigados a pensar nisso. Só que são. Por trás deste acontecimento pitoresco e aparentemente benigno, está um embriãozinho de um tipo muito particular de terrorismo que não olha a meios para atingir os fins: vender, ter visitas na página, etc. É provável que, dado o êxito que tem a rubrica do César, Rebenta a Bolha, eles conseguissem esse sucesso de visitas se tivessem usado, como título da notícia, “REBENTA A BOLHA REGRESSA ÀS MANHÃS DA COMERCIAL”. A rubrica tem uma base de fãs suficientemente grande para assegurar à Impala um número volumoso de visitas, curiosas para saber quando e como voltará a rubrica.
Mas não. Optaram pelo assustador negrume de “CÉSAR MOURÃO: RUMORES DE ATAQUE CARDÍACO”. Lamento se vou chocar o idiota que escreveu a notícia e o grupo para onde trabalha, mas usar este título, que tanto nos fez rir, é trabalhar para o Mal. É ser ruim, facínora, uma besta calculista e cruel. Eu diria que é ser também um bocadinho filho da puta – mas tenho sempre algum pudor em insultar as mães, que podem não ter tido nada a ver com aquilo em que os seus rebentos degeneraram.
Lamento se o uso da expressão “o Mal” soa apocalíptico, mas uma pessoa que inventa este título e um grupo que lhe paga para inventar este tipo de coisa dificilmente entrará para a categoria de bom e decente ser humano. É um impressionante jackpot de maldade. Para com o visado da notícia, para com família e amigos do visado da notícia e para com os seus leitores que – sem que nenhuma mentira seja, efectivamente, dita – são completamente aldrabados. E eu sei que não é “cool” ser bom e decente, e que há uma magia especial em ser mau. Mas é uma magia relativa. A filha-da-putice pode provocar uns quantos “rushes” de adrenalina, umas quantas ejaculações no vazio; mas a médio prazo só faz mal aos outros e a quem a pratica. Tenho para mim que os sacanas – não os benignamente sacanas, mas os cruéis, os sem escrúpulos – invariavelmente acabarão infelizes, nem que seja nos últimos momentos da vida.
Mas pronto. Tenho de o dizer, Impala: fizeram-nos rir. Dentro da trampa, acabou por ser só meia trampa.
Mais asqueroso foi o que aconteceu ao Rui Maria Pego.
O Rui caiu no erro de acreditar que há mais inteligência no mundo do que, na verdade, há. Quando li (e depois partilhei) o excelente texto que escreveu sobre o atentado de Orlando, onde, com notável pertinência e dignidade, decidiu partilhar com o mundo uma parte privada da sua vida, escreveu “coincide gostar de meninos”. Como é evidente, o Rui estava a contar que os leitores entendessem contexto e tivessem a sensibilidade de perceber o uso da palavra “meninos”. Mas dei por mim a pensar – porque começo a ser uma raposa velha nestas coisas – “isto vai dar merda”. Como é evidente, poucas horas depois, o Rui tinha editado o texto e substituído “meninos” por “homens”. Só posso imaginar o que algumas vozes das redes não lhe terão dito, passando ao lado da profundidade e inteligência daquele texto para se centrarem no fogo de artifício.
Como seria de esperar, a imprensa reagiu, em parte considerável, com os previsíveis “Rui Maria Pego assume homossexualidade”, “sai do armário”, etc; num laivo de esperança no futuro dos media, houve, felizmente, alguns órgãos de informação que foram por caminhos mais subtis e mais centrados no valor universal das palavras do Rui.
Dei por mim a estranhar – embora feliz com isso – a questão dos “meninos” não ter sido explorada. Estaríamos a amadurecer, a crescer?
Não.
Tardou mas não falhou. O título “Rui Maria Pego acusado de pedofilia” lá começou a despontar aqui e ali – sendo que, aparentemente, a referida “acusação” até terá sido feita no Facebook do Rui em tom jocoso e para não levar a sério. Mas já é notícia, e não só nos pequenos sites amadores de (des)informação.
O que nos leva a outro dos grandes problemas da era moderna: a total e completa dependência da imprensa portuguesa das redes sociais. E a transformação de “bullies” anónimos – também conhecidos como “trolls” – em algo mais grave mais do que protagonistas da actualidade; em fontes de notícia. Quando tirei o curso de jornalismo no CENJOR, fi-lo com professores notáveis – Fernando Cascais, Mário Contumélias, Cesário Borga, etc – que me ensinaram (e de forma prática) que jornalismo era investigar, era levantar o rabo da cadeira, com um gravador, com uma câmara, com um bloco de notas que fosse, e ir para a rua, fizesse sol ou chuva, em busca de matéria relevante e enriquecedora do leitor / espectador / ouvinte.
Cada vez os cursos de Comunicação Social me parecem obsoletos, porque aquilo a que assistimos hoje, cada vez mais, é o jornalismo sedentário do “refresh”. A ferramenta de muitos profissionais da informação, hoje, é o dedo indicador – único instrumento necessário para carregar naquele ícone do browser que tem a setinha circular e que faz com que uma página de Facebook carregue uma, e outra, e outra, e outra vez. A cada vez pode ser que haja um post novo, pode ser que haja comentários novos, pode ser que haja insultos novos – o material com que se fazem as notícias.
Acaba por ser impossível culpar os jornalistas. Estão a trabalhar para viver, seguindo as novas regras. Tenho a certeza que, em muitos casos, são jovens a cumprir ordens sem levantar ondas para que não lhes seja retirado o já parco ordenado.
Mas é terrível. Porque é capaz de ser o novo significado de “evolução”.