Gosto de comédias românticas. Não de todas, mas por vezes creio que o género é tido como coisa menor, manchada em tons de piroso, quando, na verdade, está repleto de encantadores exemplos de brilho, sensibilidade, inteligência e humor. Seja como for, por cada exemplo deplorável que surge – geralmente envolvendo pessoas do elenco de Anatomia de Grey, como Patrick Dempsey e Katherine Heigl (nada contra a série; mas admitamos que eles não têm sabido escolher os filmes em que entram!), ou Matthew McConaughey antes de ter salvo a sua carreira começando a fazer bons filmes – há que pensar na quantidade jeitosa de maravilhas do calibre de O Apartamento, de Billy Wilder; Annie Hall, de Woody Allen; Um Amor Inevitável, de Rob Reiner; Quatro Casamentos e um Funeral, de Richard Curtis; Não Digas Nada, de Cameron Crowe; ou Alta Fidelidade, de Stephen Frears.
Foi nestes bons exemplos que pensei quando estava a escrever Refrigerantes e Canções de Amor, filme cujas rodagens terminaram agora e que, tudo indica, irá estrear dia 25 de Agosto. Nestes últimos e, acima de tudo, na minha própria vida. Por muito incómodo – embora, por fim, compensador – que seja esse processo.
“Escreve sempre sobre coisas que conheces”, reza uma famosa regra da escrita de argumentos. O meu argumento passa-se em universos que não são exactamente os meus – o da indústria musical, o da publicidade e o dos supermercados – mas, na sua essência, muito do que estava a acontecer na minha vida em 2007, o ano em que escrevi a primeira versão, abriu o seu caminho no argumento e lá se instalou. Deixem-me que vos conte como.
Tudo começou com uma notícia que eu contara há anos numa edição de O Homem Que Mordeu o Cão, a rubrica que faço há quase 20 anos na Rádio Comercial (com um hiato pelo meio). Achei essa notícia tão boa que a guardei, na esperança de que um dia ainda iria fazer alguma coisa com ela – nem que fosse um sketch. A notícia falava de uma técnica de engate, a ser explorada em alguns supermercados americanos, a que os seus mentores chamavam “carrinhologia” (“trolleyology”). Basicamente, consiste em procurar o amor nas grandes superfícies comerciais olhando para o interior dos carrinhos de pessoas potencialmente solteiras, de modo a perceber quem são elas e se há alguma coisa que bata certo com o que costumamos pôr no nosso próprio carrinho. A ideia pareceu-me divertida e fascinante, e cheguei a escrever aquilo a que se chama um “treatment” – um resumo das linhas mestras da história e do projecto – para uma série cómica ou um filme passado num supermercado chamado O Carrinho da Esperança. Escrevi e lá ficou arrumada numa das pastas de “ideias não concretizadas”, no meu computador.
Avancemos até 2007.
Em 2007, o meu primeiro casamento, de 10 anos, chega ao fim. Chega ao fim sem drama, comigo e com a minha cara-metade a percebermos que tínhamos chegado ao fim da estrada e que não havia volta a dar. Como que plantando na minha mente uma semente do que viria a ser o argumento de Refrigerantes e Canções de Amor, quis o destino que o momento em que tivemos A conversa, ocorresse na zona de restauração do centro comercial onde fazíamos desde sempre as nossas compras semanais. Estávamos a comer fast food. E tivemos A conversa. Entre lágrimas, ketchup e batatas fritas.
Por muito que uma relação se feche de forma amigável e civilizada, fica sempre uma tristeza no ar. No entanto, a tristeza não tombou sobre mim quando me vi sozinho numa casa. Tentei várias vezes que tombasse – porque é masoquista a natureza do ser humano – ao lembrar-me dos grandes momentos de 10 anos de vida a dois: a festa do casamento, as grandes viagens a locais distantes como os Estados Unidos ou o Egipto. Mas tudo isso me parecia devidamente arrumado no seu tempo e não constituindo razão para depressão e lágrimas.
A bizarra tristeza da solidão tombou sobre mim em algo tão desprovido de encanto como isto: a primeira ida a solo ao supermercado.
Tinham sido 10 anos de visitas a dois ao lugar mais aborrecido da terra, cumprindo semanalmente as rotinas aborrecidas da compra de produtos tão pouco românticos como papel higiénico ou lava tudo para ladrilhos. Foi ao caminhar sozinho, agarrado ao meu carrinho, pelas ruas do supermercado de sempre que, olhando para a marca de sempre de papel higiénico, pensei: “Porra. Estou sozinho.”
Sim, não são tanto as grandes coisas, mas as pequenas, as que marcam mais.
Eu podia ter lidado com isto de duas maneiras: ou ficava, finalmente, deprimido – ou tentava construir alguma coisa a partir desta estranha sensação. E assim comecei a delinear a história de Refrigerantes e Canções de Amor. No início era só isto: a história de um tipo cuja relação acaba, o que o faz ficar viciado no local menos encantador e romântico à face da terra – o supermercado do bairro.
De imediato lembrei-me da ideia da carrinhologia – e se ele tentasse reconstruir a sua vida analisando os carrinhos de supermercado das clientes do estabelecimento? E se fosse assim que ele encontrasse a mulher da sua vida?
Parecia-me interessante – mas parecia-me pouco. Parecia-me monótono. Quando muito, seria coisa para resultar numa curta-metragem. Quanto tempo consegue um espectador aguentar a deprimida reconstrução de um solitário sob a luz branca e doentia de um supermercado?
Comecei a apimentar a coisa. Para mim estava fora de questão que aquela personagem fosse eu. Não, não era um humorista ou um radialista. Mas tinha de passar por algumas angústias que me eram familiares – e não apenas as sentimentais.
Escolhi para Lucas, o protagonista, a profissão de músico. Porque gosto de música (na óptica do ouvinte e fã), mas porque isso me permitia desabafar sobre algumas das minhas próprias inseguranças enquanto “artista”. O facto de manter as aspas na palavra só mostram como as inseguranças continuam. Sim, tenho algumas ambições de fazer algo artisticamente relevante. Mas o que eu faço – piadas, sketches, guiões para programas de humor, rubricas radiofónicas em programas de grande audiência – é digno de ser chamado de arte? Por muitas voltas que der, não estarei só a fazer mero entretenimento para usar e deitar fora? A resposta a isso é, quase de certeza, sim. Mas isso não me impede de manter uma inabalável esperança de conseguir, um dia, ser mais do que isso. E isso entrou no argumento: Lucas teve uma boy band popularíssima nos anos 90 com um amigo, Pedro Capelo. A banda terminou com Pedro a seguir uma bombástica carreira a solo e Lucas a sonhar tornar-se um músico mais sério, mas a não conseguir ser mais do que um competente compositor de músicas para anúncios.
Porque um filme requer mais drama do que a vida real, pareceu-me que o fim do casamento de Lucas teria de ser francamente mais espectacular que o fim do meu casamento. Em vez de uma conversa civilizada e da constatação a dois do fim do caminho – o que foi o meu caso – no filme, Lucas descobre que o seu antigo companheiro de banda, Pedro, anda com Carla, a sua mulher. Isto faz com que vida pessoal e profissional se cruzem numa hecatombe total para Lucas. A partir daí, a narrativa entronca na minha história – é quando tem de ir ao supermercado pela primeira vez sozinho, fazer as compras para a casa, que a tragédia da solidão das pequenas coisas lhe acerta em cheio. No caso de Lucas, ele acaba mesmo a colapsar no supermercado, acabando por ser acordado por duas personagens que virão a ter a sua importância no desenrolar da história – Daniel e Anísio, filho e pai, proprietários do supermercado.
Voltemos à minha vida.
Comecei, portanto, a escrever Refrigerantes e Canções de Amor em plena desagregação do meu casamento, o que me estava a impedir de perceber como é que a vida podia dar uma volta para o protagonista, Lucas. Possivelmente iria tudo desaguar na carrinhologia e na arte de conhecer pessoas pelas compras que fazem.
Estava eu neste quebra-cabeças, quando me apaixonei.
Apaixonei-me pela mulher com quem viria a estar casado oito anos e que seria a mãe do meu filho. Apaixonei-me sem, na verdade, a conhecer por inteiro – e talvez o mistério tenha contribuído para a paixão. A verdade é que, apesar de ter sido colega dela de rádio durante anos antes de levar com a seta de cupido e de me declarar e de começarmos a namorar, ela sempre fora um mistério. Sabia-se quase nada sobre a vida dela. Era parte da sua mística. Mas o que eu não sabia, juntamente com o que conseguia perceber nas entrelinhas, foi o suficiente para eu perceber – é ela.
E foi assim que a incorporei na história de Refrigerantes e Canções de Amor. Como uma dinossaura cor-de-rosa.
Permitam-me que explique: desde Hitchcock que o Cinema nos deu uma quantidade impressionante de mulheres misteriosas. Já tudo parecia estar inventado no que toca a mulheres-mistério. Como criar uma diferente de todas as outras? A solução que encontrei estava, que nem uma peça que encaixa na perfeição num puzzle, no ambiente do supermercado. Que melhor metáfora para uma mulher fascinante e misteriosa do que atribuir-lhe a profissão de mascote de uma marca de qualquer coisa – acabou por ser sumos – encerrando-a dentro da vestimenta de um enorme boneco: um dinossauro cor-de-rosa? Para ela é uma profissão, uma maneira de ganhar algum dinheiro – mas é mais do que isso. É uma defesa perante um mundo que a deixou desconfortável. Ela não sai do fato de dinossauro à frente de ninguém.
Nas constantes idas de Lucas ao supermercado, onde está viciado na carrinhologia e na sua própria desgraça de solidão e memórias de compras a dois, ele acaba por conhecer a dinossaura. E, por bizarro que isso pareça aos dois, uma paixão começa a desenvolver-se entre eles. No caso de Lucas – cujo ponto de vista conduz a narrativa do filme – será possível alguém apaixonar-se por uma pessoa que não faz a mais pequena ideia de como é, visto que ela não abandona o seu fato de dinossauro, a sua fortaleza rosa-choque de esponja? Poucas coisas que escrevi na minha vida me deram mais gozo de explorar do que este estranho romance entre dois solitários inadaptados.
Se a vocês irá dar gozo ver, isso veremos daqui a uns meses. O filme, realizado por Luís Galvão Teles e interpretado por um brilhante elenco – Ivo Canelas, Victoria Guerra, João Tempera, Lúcia Moniz, Jorge Palma, André Nunes, Ruy de Carvalho e Sérgio Godinho – está agora em fase de montagem.
Como é natural quando se faz um filme, a dada altura uma história deixa de ser só nossa. Passa pelas sensibilidades de muita gente que está no pleno direito de a fazer sua, também – quem a dirige, quem a interpreta, quem a filma, quem a ilumina, quem faz os cenários, os adereços, o guarda-roupa. Mas, na sua essência, e seja qual for o filme que saia deste processo, o argumento de Refrigerantes e Canções de Amor é uma das coisas mais honestas, íntimas e pessoais que escrevi na vida. Ele é a história do meu alucinante ano de 2007 e de boa parte das minhas angústias, inseguranças e alegrias. Como tal, construí-lo fez-me melhor – e saiu mais barato – do que terapia.